quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Eu sei mas não devia



Marina Colassanti

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista senão as janelas ao redor.
E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de tudo as cortinas
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E à medida que se acostuma a acender a luz, esquece-se o sol, o ar, a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.
E aceitando os números aceita a não acreditar nas negociações de paz.

A gente se acostuma a pagar tudo o que deseja e o de que necessite.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que preciso.
E a fazer fila para pagar mais do que as coisas valem.
E “a saber” que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
A abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir comerciais .
A ir ao cinema e engolir publicidade a ser instigado, conduzindo, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial do ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir os passarinhos, a não ter galo da madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisa demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta, e que de tanto se acostumar, se perde de si mesma.

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